Aula de direção, por Odorico Leal
A certa altura elaborei uma máxima, pensando no aspecto necessariamente coletivo do ato de dirigir: «Dirigir é sinalizar». Dirigir bem é uma ode à comunidade.
Placa de sinalização de advertência – Vento lateral.
Quando fiz 40 anos, resolvi que aprenderia a dirigir. Fui à autoescola mais próxima do apartamento onde moro e paguei a matrícula, sem qualquer pesquisa comparativa de preços. Não porque me sobrasse dinheiro. É que qualquer pesquisa atrasaria os trâmites necessários e poderia solapar a convicção que tinha subitamente me possuído.
Talvez eu não devesse falar aqui numa convicção súbita. Eu estava com 40 anos. Uma convicção lenta e difusa deve ter se construído em mim aos poucos, à margem de ponderações conscientes mais imediatas. Também não chego a dizer que foi se formando no meu inconsciente. Formou-se ali em algum limiar, um não-lugar da razão, em que as coisas que não ignoramos, mas que também não queremos encarar de frente, deixam-se ficar, como se à espera de atendimento por um funcionário pouco disposto. O funcionário repete várias vezes: «Volte depois. Quem sabe mês que vem. No momento não temos recursos.»
Ocorreu, então, que, aos 40 anos, o funcionário abriu a janela do guichê. Vários dos meus interesses obscuros se entreolharam, na expectativa de uma convocação, mas o eleito era meu interesse em aprender a dirigir. Fui ao guichê, em defesa desse interesse obscuro.
No balcão da autoescola, a atendente quis saber se era um caso de renovação de carteira, uma segunda via, uma nova habilitação. Expliquei que não. Era minha primeira habilitação. Na minha fantasia, a atendente perguntava «Então não dirige?», depois convidava os demais funcionários a testemunharem aquela figura irrisória que, aos 40 anos, não sabia dirigir e que agora se apresentava à autoescola de cara limpa, como se a sociedade fosse simplesmente absorver tamanho grau de inépcia, tamanha impraticabilidade existencial. Temi que me agarrassem e me linchassem ali mesmo.
Não aconteceu. A atendente estava cansada de lidar com toda sorte de destinos. Pouco lhe interessavam detalhes biográficos. Fiz a matrícula, explicaram-me que eu faria testes físicos e psíquicos, uma série de aulas teóricas que culminariam numa prova sobre o código de trânsito, depois as aulas práticas e, por fim, a prova de direção.
Voltei para casa com a sensação de que tudo se dera estranhamente sem percalços.
Nos testes físicos e psíquicos, triunfei. Passei às aulas teóricas, feitas online, o que muitas vezes me permitia acompanhar as instruções e simultaneamente ninar João, meu segundo filho, então com três meses. De alguma forma, atravessei os anos heroicos do primeiro filho, Martim, então com sete anos, sem jamais tirar a carteira de habilitação. Durante esses anos não poderia enumerar todas as ocasiões em que minha estultícia automobilística me infligiu constrangimentos sem fim — humilhações que eu suportava não com estoicismo, pois não sou um estoico, mas com profundo rancor. Sem necessariamente buscá-lo, o simples fato de que eu não dirigia me obrigava a romper com os modelos tradicionais de figura paterna. Mas não havia aqui ganho algum para nenhuma bandeira ideológica. Pois nem todas as desconstruções são pertinentes. Algumas coisas estão bem tal como estão. Não havia como fundar um movimento baseado em pais que não dirigem, pois não saber dirigir não era um ato de reinvenção da vida; nas minhas circunstâncias, era apenas ridículo. O segundo filho, pois, lidaria com uma figura paterna ligeiramente mais canônica.
Nas aulas teóricas, travei contato com informações reveladoras, como as condições adversas para o volante. As condições adversas envolvem a via, a luminosidade — ofuscação ou penumbra —, o tempo, o veículo, o trânsito e, por fim, o próprio condutor. Entre as condições adversas para o condutor, destaca-se a embriaguez, mas também o sono, o cansaço, a pressa e a ansiedade, além de coisas menos óbvias, como a tristeza e até mesmo a alegria. Um condutor alegre demais é um risco para a sociedade. O condutor ideal é neutro, livre de toda emoção exagerada. As condições adversas no trânsito não diferem das condições adversas na vida. No Brasil, porque nos emocionamos demais, morrem 40 mil por ano nas vias de trânsito rápido, nas vias arteriais, nas vias coletoras, nas vias locais e nas vias rurais pavimentadas e não pavimentadas.
No dia em que marquei a prova teórica de direção, 28 de agosto de 2023, recebi um email da editora a quem tinha enviado o livro que então se chamava Paraíso Canibal. Ela dizia que o conto que ocupava toda a primeira parte estava bom. Outros pediam reparos. Me comprometi a repará-los. Foi a primeira vez que tive a vaga impressão de que, finalmente, depois de toda uma vida bem ou mal dedicada à literatura, ou pelo menos desencarrilhada pela literatura, publicaria um livro. Naquele dia, anotei em meu diário: «De qualquer modo, se vier de fato a ser publicado, e só acredito vendo, há grandes chances de realizar duas façanhas aos 40 anos: publicar meu primeiro livro e aprender a dirigir.»
No dia da prova teórica, revisei placas de trânsito. A placa para advertência de vento lateral era uma palmeira soprada liricamente pelo vento. Numa rodovia, a visão dessa palmeirinha pode ser até perigosa. Lança o condutor num sonho tropical, retira-o do trânsito para uma praia na Bahia, ou no Ceará, alguma praia perdida, inacessível, praia de sonho. Tudo correu bem na prova.
Passei às aulas práticas. Já era setembro, e a cidade se enfeitava de ipês floridos. Eu traduzia Songs of the Distant Earth, de Arthur C. Clark. Um amigo por coincidência me enviou uma mensagem relatando alguma anedota automobilística, que ele encerrava com uma grande gozação sobre eu me furtar a uma das «experiências masculinas arquetipais» — dirigir um carro. Não pretendia revelar que estava tirando a carteira antes de tê-la em mãos. Mas tive de revelar. Uma coisa é certa: uma amizade sincera é difícil. Os homens estão sempre contando vantagem. Na origem da linguagem humana não está a religião, mas o impulso irresistível de se gabar. Pensei no conto «Uma Amizade Sincera», de Clarice.
Nas aulas práticas, meu instrutor era um cidadão robusto, um tanto atarracado, embora não propriamente baixinho. Um romano amorenado e peludo. Cenho franzido e forte sotaque paulista. Nunca esqueci este fato mórbido e curioso: na primeira aula, a caminho das ruas pacatas do Pacaembu, avistamos um acidente. Não o acidente em si, mas o resultado. Segundo a exegese póstuma do meu instrutor, na curva, o motorista perdeu o controle do automóvel e acertou em cheio um ipê branco, todo florido. Li em algum lugar que a floração do ipê branco dura apenas um dia. Que aquele ipê branco fosse atropelado no esplendor de sua breve floração era mais cômico que poético.
No caminho para as aulas, o instrutor se matinha rigorosamente calado. Como o silêncio me constrange, eu tentava puxar conversa, sem muitos resultados. Certa manhã a aula foi mais cedo, e eu mesmo não tive ânimo para induzir um bate-papo protocolar. Me resignei ao silêncio. Mas, para minha surpresa, dessa vez o próprio instrutor não suportou o constrangimento, e comentou: «Hoje vai ser mais sossegado, você já começou a assimilar algumas coisas…». Simpático àquele esforço comunicativo, resolvo fazer perguntas. E, como nas aulas anteriores, a toda pergunta que faço o instrutor se lança num discurso levemente irritadiço sobre fluidez e «deixar acontecer», não buscar «métodos e regras», pois tudo isso apenas engessava nossa habilidade ao volante. É preciso «se tornar um» com o carro. Toda preocupação da minha parte era minimizada e até estigmatizada como as preocupações de um neurótico. O pior é que sou mesmo neurótico, claro, mas, nesse caso, eu considerava minhas preocupações legítimas.
Frame de Cléo de 5 à 7, 1962. Dirigido por Agnes Varda
Desde que começaram as aulas práticas, passei a ver intimações do assunto por toda parte. No documentário Daguerreótipos, de Agnès Varda, deparo-me com uma cena na sala de aula de um grupo em preparação para a prova de legislação de trânsito. Em Cléo, a personagem tinha acabado de tirar a carteira e dirige por Paris. Em um dos livros do Pequeno Nicolau, que leio para Martim, um dos contos se chama «Aula de Direção». Em Os Anos, de Annie Ernaux, noto as muitas passagens sobre dirigir, que vão desde o mais íntimo — não são os genes que a liga aos filhos, mas coisas como os incontáveis «trajetos feitos de carro» — ao cósmico, como quando «de carro na estrada dirigindo sozinha, ela se sente contida em uma totalidade indefinida do mundo presente.»
Mas a grande surpresa foi encontrar o tema em Pnin, de Nabokov. O atrapalhado e comovente Timofey Pnin foge da Rússia e termina em um cargo precário de professor numa universidade americana. A certa altura, decide aprender a dirigir. Faz aulas, mas só se sente de fato instruído quando sofre uma lesão na lombar e estuda meticulosamente o Manual do Motorista, publicado pelo governo, e o artigo sobre «O Automóvel» na Enciclopédia Americana. De cama, passava horas «pisando em pedais e passando marchas fantasmas». A relação de Pnin com o instrutor também era tensa:
«Durante as lições propriamente ditas com um instrutor severo que limitava suas ações, emitia direcionamentos desnecessários berrando jargões técnicos, tentava tomar-lhe o volante nas balizas e desconcertava um pupilo calmo e inteligente com calúnias vulgares, Pnin mostrara-se totalmente incapaz de combinar perceptualmente o carro que ele estava dirigindo em sua mente com o carro que estava dirigindo na estrada.»
O tema subjacente é a incapacidade de Pnin de se adequar à realidade, especificamente à nova realidade americana que o circunda em sua vida de expatriado.
No meu caso, não li nenhum Manual do Motorista. Assim, as últimas aulas práticas chegaram sem que eu dirigisse com convicção. Mas aprendi a baliza. A certa altura elaborei uma máxima, pensando no aspecto necessariamente coletivo do ato de dirigir: «Dirigir é sinalizar.» Dirigir bem é uma ode à comunidade. Não resisti e compartilhei minha máxima com o instrutor, que, previsivelmente, ficou irritado e insistiu mais uma vez que eu deixava de avançar porque me prendia a métodos e regras e, agora, a máximas. Por fim, concluiu: «Um copo cheio não recebe mais água. Preciso esvaziar o copo para receber o que importa mais.»
Nas semanas seguintes uma grande onda de calor se abateu sobre o mundo. Segundo a Administração Oceânica e Atmosférica, o agosto anterior havia sido «o agosto mais quente do planeta» nos 174 anos de registro. Na Líbia, a tempestade mediterrânica Daniel — pensei que só davam nomes a furacões, tufões, ciclones, não a tempestades — levou ao deslocamento de 43 mil pessoas e matou muitos milhares. Pensei em meu querido líbio Hisham Matar, que traduzi para a Âyiné. Para piorar, Daniel provocou o rompimento de duas barragens; a água desimpedida formou um grande rio que cortou uma cidade ao meio; um ministro disse que equipes em barcos estavam procurando «muitas famílias de Derna que foram arrastadas para o mar.» Outro disse que «os corpos estão por toda parte — no mar, nos vales, no topo dos edifícios.»
No sábado, 7 de outubro, fiz a prova de direção. Fui em um ônibus da autoescola com adolescentes. No bairro da Vila Jaguará, uma angustiante espera. Fiz a baliza com sucesso, sinalizei como se não houvesse amanhã, mas o carro morreu duas vezes. Eu tinha esquecido de voltar da segunda para a primeira marcha após paradas. Não passei.
No dia 11 de outubro, anotei no meu diário: «Ontem enviei Paraíso Canibal revisado para a editora. Ainda não me respondeu nada. É a hora da verdade: ou recusa, com todo tato e delicadeza, ou publica.»
Outubro foi passando numa velocidade que nem se podia dizer aterradora, pois não chegava a ser perceptível. Os contos que tentei escrever desde janeiro não eram nada mais do que tentativas de tornar o ano perceptível, de rasurá-lo, deformá-lo com vida. A literatura como picho.
No dia 18 de outubro, por fim, fiz a prova de direção pela segunda vez. Acordei às cinco, fiz um café, depois fui ao banheiro sucessivas vezes. Às 06:20, cheguei à autoescola, de onde fui com outros alunos em um ônibus à tal Vila Jaguará. Lá, precisei ir ao banheiro de novo. Quando comecei o teste, tinha tudo para me sair muito pior do que da primeira vez, mas o avaliador foi um pai benevolente. Me ajudou e fez vistas grossas, como se estivesse avaliando uma criança. No fim, passei. Cometi apenas uma infração: esqueci de sinalizar ao fazer uma curva. Desonrei minha máxima: «Dirigir é sinalizar.»
Em casa, liguei para o Piauí e contei a boa nova à minha mãe, que mencionou São Cristóvão, padroeiro dos motoristas. Ela passou a me incluir em suas orações ao santo. Sem notícias da minha editora, eu me perguntava quem seria o padroeiro dos escritores. Só em 6 de dezembro tive uma resposta definitiva: o livro seria publicado. Ainda não se chamava Nostalgias Canibais. Por essa época a máxima doméstica já era «Papai no volante, perigo constante», que eu mesmo ensinei a Martim. Mas, bem ou mal, eu já dirigia por toda a São Paulo, às vezes pensando em Annie Ernaux e naquela sensação de estar contido «em uma totalidade indefinida do mundo presente.»
Que bom!
Que prazer ler esse texto ♥️