Atenção ao homem cuja caligrafia balança como um junco ao vento, por Anne Carson
Comecemos com a vida, a sua vida. Lá está ela diante de você — talvez uma estrada, um laço, uma linha pontilhada, um mapa.
Este é um ensaio sobre mãos e caligrafia. Penso na caligrafia como um meio para organizar o pensamento em formas. Gosto de formas. Gosto de organizá-las. Mas, por causa de mudanças neurológicas recentes no meu cérebro, vejo as formas se desfazendo em mim. Minha responsabilidade com as formas não pode se cumprir graciosamente. No entanto, ofereço o que segue na esperança de que não pareça desgrenhado ou deprimente.
Para desde já evitar ser deprimente, e porque os começos são importantes, começo com um poema do poeta romano Catulo, que viveu no século I a.C. e morreu aos trinta anos. Foi ele o começo da tradição da poesia lírica romana. Este é o fragmento 46, um poema que invoca o início da primavera:
Agora a primavera desimpedida!
Agora o equinócio acalma seu furor azul, quieto
como a página.
Eu te digo, Catulo, deixe Troia, deixe o chão em chamas, eles o fizeram.
Veja transformemos tudo, os sentidos,
todas as cidades pálidas da Ásia você e eu.
Agora a mente, ávida esmoleira do passado?
Agora dos pés nascem folhas radiantes ao ver o verde anzol
que anseia.
Ah meu bem não vá
pelo mesmo caminho, vá por um novo caminho.
Catulo talvez tenha sido o poeta favorito de Cy Twombly, um pintor que usava muito a caligrafia nas suas telas. Os críticos se viram provocados e Roland Barthes escreveu um ensaio sobre isso em The Responsibility of Forms [O óbvio e o obtuso, na edição em português]. «Como produzir um traço que não seja tolo?»1 é a pergunta que ele faz no ensaio. Como produzir um traço que não seja tolo: este não é um dos nossos grandes problemas como humanos? Se sou eu ou se sou Hitler ou se sou Wilhelm von Humboldt, é um problema da vida humana.
Comecemos com a vida, a sua vida. Lá está ela diante de você — talvez uma estrada, um laço, uma linha pontilhada, um mapa —, digamos que você tenha 25 anos, então você toma algumas decisões, faz coisas, sofre contratempos, tem triunfos, torna-se alguém, um motorista de ônibus, um professor, um pirata, passam anos, talvez em uma família talvez não, talvez feliz talvez não, então um dia você acorda e tem setenta anos. Ao olhar adiante vê uma porta escura. Você começa a notar que a porta escura está sempre ali, nas bordas, quer você olhe para ela ou não. A maioria dos momentos a contém, a maioria dos momentos tem uma espécie de sedimento da porta escura no fundo do copo. Você se pergunta se mais alguém a vê. Você pergunta. Os outros dizem que não. Você pergunta por quê. Ninguém sabe dizer.
Há um minuto você tinha 25 anos. Então você foi em frente e conseguiu a vida que queria. Um dia você espiou por cima dos 25 e lá está, a porta, escura, à espera.
Carson com suas luvas de boxe.
Quando fui diagnosticada com Parkinson, um sintoma particularmente pavoroso para mim foi que a minha caligrafia se desintegrou. Eu costumava ter prazer em escrever em cadernos, estantes deles, dia após dia, ano após ano. Agora os traços verticais se dobram ou se quebram ou vão em todas as direções, as vogais se encolhem como respingos, a inclinação perde seu ângulo suave e esperto, é tudo constrangedor. Ou, como Barthes diria, tolo. Eu desfaço parágrafos inteiros de vergonha.
Difícil descrever ou explicar a vergonha de uma caligrafia ruim.
Uma caligrafia ruim é feia. Parece meio tola. Eu ia dizer que parece inautêntica, mas então percebi que é justamente o contrário. Na sua atrocidade, minha caligrafia caótica parece revelar algo sobre mim que prefiro não encarar. Ela arranca aquilo que Gerard Manley Hopkins chama de «inscape» [uma individualidade essencial, forma intrínseca]. «Atenção ao homem cuja caligrafia balança como um junco ao vento», Confúcio disse. A grafologia, como você sabe, é o estudo da caligrafia como traço de caráter. Difícil acreditar que não seja um bom traço.
Se minha letra se inclina para a direita, sou uma pessoa bastante influenciada pelo meu pai; se sou uma procrastinadora, coloco os pingos nos is um pouco à esquerda; se sou Hitler, tenho uma letra muito muito pequena e coloco os pontos nos meus is com uma linhazinha. E aqui está um fato interessante sobre mãos: quando uma pessoa paralisada do pescoço para baixo recebe uma ferramenta que lhe permite escrever com sua boca, ela reproduz o mesmo estilo de caligrafia de antes da paralisia. Sua caligrafia é seu cérebro e seu cérebro é você.
Mas o Parkinson bagunça tudo isso. Desliga certos genes nas células do cérebro, ninguém sabe por quê. Isso leva à diminuição dos níveis de uma substância cerebral chamada dopamina e a ritmos elétricos incomuns. Muitas ações físicas são inibidas ou mutiladas, como escovar os dentes ou escrever à mão. Mas a desintegração escritural é apenas uma imagem do começo de um colapso cognitivo cujos efeitos graduais incluirão desordem, descontinuidade, esquecimento, lacunas e fissuras, desacelerações e paradas. Em The Brain that Changes Itself [O cérebro que se transforma], o psiquiatra Norman Doidge escreve:
Cada célula em nosso corpo contém todos os nossos genes, mas nem todos os genes são ativados, ou expressos. Quando é ativado, um gene produz uma nova proteína que altera a estrutura e a função da célula. Isso é chamado de função de transcrição porque quando o gene é ativado, as informações sobre como produzir essa proteína são «transcritas» ou lidas a partir do gene.2
O que deduzo disso é que o cérebro tem sua própria caligrafia, que depende de certa proteína. Posso imaginar meu pobre cérebro jogando as mãos para o alto, consternado ao descobrir que toda a proteína da boa caligrafia se foi ou se bagunçou.
Como produzir um traço que não seja tolo.
Cy Twombly, «Apollo and the Artist» (1975)
Quando os críticos falam do «estilo tardio» de Beethoven ou Baudelaire, eles querem dizer as marcas no papel tanto quanto as, ou como um traço das, assombrações no cérebro? Aqui entramos na zona de estilhaçamento. Mãos dentro de mãos. Vetores metabólicos e metafóricos se sobrepõem. É confuso? Sim, é confuso.
«Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes», Theodor Adorno escreveu nos Escritos musicais. Como não gosto da ideia de me considerar uma catástrofe, passemos do estilo tardio ao estilo antigo. Os primeiros sistemas de escrita do mundo se desenvolveram independentemente em quatro lugares: Oriente Próximo, Egito, China e México. Todos começaram como sistemas de contagem ou contabilidade — uma maneira de controlar bens ou dinheiro. Mais tarde (isto é, milhares de anos mais tarde), uma preocupação com a vida após a morte abriu caminho para a literatura por meio da escrita em inscrições funerárias. Morte e propriedade, você poderia dizer, duas das nossas maiores ansiedades, pareciam capazes de ser administradas, ou ao menos aplacadas, ao se colocarem marcas em uma superfície e assim inspirar a primeira marcação sistemática.
A psicologia de um momento particular nesta evolução me interessa, o momento de transição entre o reino das coisas materiais (bens e dinheiro) para o das palavras e ideias (poemas sobre a morte). Voltemos para 3500 a.C. e a civilização dos sumérios (atual Iraque). Aqui as pessoas controlavam dívidas por meio da contagem de fichas de argila e as colocando em um envelope de argila. Para simplificar as coisas, alguns contadores começaram a marcar o exterior do envelope de argila para indicar o número de fichas em seu interior. É presumível que o número de fichas dentro do envelope fosse o mesmo que o número de marcas do lado de fora. Mas e se não fosse? Haveria margem para o engano ou mesmo a falcatrua? Em todo caso, quando o exterior não corresponde ao interior, as coisas podem estar dando, ou já deram, problema. Essa fronteira não é tão simples.
É possível que eu esteja hiperanalisando esse momento imaginário da escrita antiga. Mas me fascina que introduzir uma dialética do dentro e fora polarize os atributos de cada um e possa tão facilmente deslizar para um julgamento de certo e errado, bom ou mau.
Então sejamos um pouquinho mais sutis sobre o problema da caligrafia ruim. Parece haver duas soluções possíveis:
1. aperfeiçoar o ofício para que a caligrafia não seja ruim
2. renunciar ao ofício para que a atrocidade não importe
John Keats, nos seus manuscritos, seria um exemplo do primeiro caminho, o caminho da perfeição. Ao publicar um volume de poemas, Keats copiava o texto com uma mão tão regular, fluente e confiante que é difícil acreditar que houve qualquer momento de dúvida ou desespero na composição dos seus versos. Keats era um romântico, um artista bastante preocupado com o indivíduo e a individualidade. A beleza cristalina das suas cópias parece uma revelação, se não uma celebração, daquilo que ele considera seu melhor eu.
No outro extremo do espectro, consideremos Twombly. Nascido em Lexington, Virginia, em 1928, sua concepção modernista do indivíduo e da individualidade era bastante diferente da de Keats. Ele amava livros e a sua inspiração era, com frequência, literária; suas pinturas carregam uma caligrafia inscrita de tal modo que não há traços de si mesmo ou da sua personalidade ou do seu estado interior. Rabiscada, rasurada, desajeitada, impertinente, antipática — a letra não é de ninguém, ou de todos, ou mítica, ou apenas uma mancha deixada por algo escrito antes. Você não pode fugir de si mesmo com sua própria caligrafia, eu pensava, e ainda assim Twombly consegue. No seu ensaio, Barthes descreve a caligrafia de Twombly como «oscilante entre o desejo e a delicadeza», ou (citando o Tao Te Ching) a letra de «um homem trabalhando sem nada esperar».
Como produzir um traço que não seja tolo.
Assim como outros artistas modernos, Twombly parece ter a intenção de deixar o eu para trás, esquivando-se do ego e das suas marcas, assumindo o vazio como mais interessante do que a presença. Twombly era o melhor amigo de John Cage, o compositor de 4’3’’ e outras obras de arte que esvaziam o ego. Como Cage diz, «algo precisa ser feito para nos libertar das nossas memórias e escolhas». O que Cage fez foi introduzir operações do acaso na sua obra. O que Twombly fez foi encontrar o seu caminho para uma caligrafia sem sujeito. Os críticos às vezes se referem às linhas de Twombly como «parecidas com grafite»; não acho que Twombly tenha gostado de ouvir isso. O grafite com frequência é feio e em geral, em algum nível, ativista. Sua personalidade é a do «sublime egoísta», como Keats disse sobre Wordsworth. Certa vez, perguntei à artista Tacita Dean sobre a atitude de Twombly com relação a tudo isso. Ela o conheceu muito bem enquanto gravava um documentário de 16mm sobre ele. «Para Cy», ela disse,
sempre acreditei que se tratava do encontro e um pouco como um médium com um tabuleiro ouija. Quando ele está no momento, não pode ser interrompido (nem por ele mesmo) ou a conexão se quebra. Quando ele está no momento, o encontro se torna a pintura e nada mais importa.
Esse «momento» é o que Barthes localiza no interior da caligrafia de Twombly. Barthes comenta a leveza do traço de Twombly, seu impulso de «unir, em um único estado, aquilo que aparece e aquilo que desaparece; [não] separar a exaltação da vida do medo da morte [mas] produzir um único afeto: nem Eros, nem Tanato, mas Vida-Morte, com um único gesto, um único pensamento». E aqui está um fato incidental interessante sobre exaltação: quando uma pintura de Twombly chamada Untitled (Say Goodbye, Catullus, to the Shores of Asia Minor) [Sem título (Diga adeus, Catulo, aos litorais da Ásia Menor)] foi exibida em Houston há alguns anos, um guarda encontrou uma francesa completamente nua parada diante da tela. «A pintura me fez querer correr nua», ela escreveu no livro de visitas. Twombly ficou encantado. «Ninguém pode fazer melhor!», ele disse ao New York Times.
Vamos nos entreter com um homônimo aleatório e outro breve interlúdio poético. Eu tinha um amigo no México, um compositor chamado Guillermo, que queria compor uma sinfonia inteira a partir do som de pessoas suspirando:
Será que você ouve suspiros.
Será que você acorda em meio a um suspiro.
O rádio suspira AM,
FM.
Suspiros de ondas curtas espumam no Atlântico.
Suspiros quentes evaporam na aurora.
Pessoas se beijando param, suspiram, e se beijam outra vez.
Médicos suspiram em feridas e a corrente sanguínea muda para sempre.
Flores suspiram e duas abelhas do meio-dia flutuam do avesso.
É dúvida.
É decepção.
O mundo não me devia nada.
Folhas suspiram através da porta.
Pedaços da menina suspiram como homens.
Falsificações suspiram duas vezes.
Balthus suspira e mente sobre, alega que o suspiro foi de Byron.
Um suspiro pode vir tarde demais.
É melhor do que um grito.
Dê-me todos os seus suspiros por quatro ou cinco dólares.
Um suspiro não tem peso,
mas pode interromper a transmissão.
Será que você pode se abster.
O que é este silêncio que se leva em cada suspiro.
Caçamos juntos o suspiro e eu,
esporte de reis.
Querer parar está além de nós.
Quanto mais os suspiros cintilam mais me desnorteio — uma coisa prateada —
você achou que era o mar?
Tremor, o que é isso? O abalo incontrolável de um membro, identificado pelo cirurgião e boticário inglês James Parkinson em 1817 como um dos primeiros sintomas perceptíveis em pessoas sofrendo daquilo que ele chamou de «Paralisia Agitante». Antes disso, encontramos menção a uma doença do tremor em um tratado aiurvédico do século X a.C. na Índia; e Galeno, o antigo médico grego, notou uma aflição que ele chamou de σκελοτύρβη, o que pode ser traduzido — muito encantadoramente — como «folia dos membros». Mas somente no século XX os neurologistas passaram a pensar que essa folia poderia ser aquietada por ações física e mental. Isto é, pelo exercício físico focado, conduzido com atenção mental consciente e intensa.
Se o cérebro é plástico, como hoje acreditamos, ele pode ser mudado. Certas atividades podem reprogramá-lo, gerando novos neurônios para substituir os perdidos ou atiçando aqueles que se tornaram lentos ou ociosos. Recomenda-se o boxe. Sua combinação de esforço cardiovascular árduo e foco mental consciente provou reduzir os sintomas e frear o avanço da doença. Corpo e cérebro trabalham juntos.
Você já se perguntou como é dentro do cérebro? É uma oficina barulhenta ou um laboratório silencioso? Qual é o som de um som lá dentro? Eu o imagino como uma grande sala de reuniões com CEOs sentados por todo lado, encarando seus telefones e enviando mensagens uns para os outros. E a parte mais assustadora é esta: presumo que todos estão lá na completa escuridão. Não seria escuro dentro do cérebro? De onde viria a luz? E quem a veria?
Enfim, de volta ao tremor: escovo os dentes com meu braço direito e mão direita, onde tenho um tremor, a escova balança, portanto, para cima e para baixo em um ritmo radical, batendo nos lábios e nas gengivas. Essa folia da escova de dentes se produz pelo fluxo de eletricidade ao longo de um caminho nervoso. Mas um caminho nervoso tem um plano de ação. Se eu me concentrar e mudar o plano — movendo o meu braço para cima ou para baixo em um ângulo excêntrico —, posso interromper o fluxo e acalmar o tremor. Ou, se eu agarrar o cabo da escova com força, posso dominar o tremor com a intensidade do foco. Concentração é chave. Tenho que dirigir o pensamento à movimentação. Na minha própria concepção brutal disso, pensar faz (move?) neurônios.
Um homem chamado John D. Pepper fez uma descoberta semelhante ao controlar seus problemas caminhando. Pepper, que morreu no ano passado, é meio que um herói, ou ao menos um inovador significativo, na comunidade do Parkinson. Ele tratou dos seus problemas para caminhar caminhando: 24 quilômetros por semana em três sessões de oito cada, numa velocidade de seis quilômetros por hora. Seis quilômetros por hora é uma velocidade mais alta do que aquela em que eu quero naturalmente andar. É uma batalha. Tenho que prestar atenção no movimento. Então, enquanto você executaria uma ação complexa como andar ou escovar os dentes automaticamente, porque os CEOs sentados pela sala de reuniões no seu cérebro estão enviando memorandos um para o outro deixando claro o que cada um deve fazer e quando deve fazê-lo, eu preciso parar e pensar para aplicar um controle consciente.
É o oposto do estado exaltado de Twombly sentado em sua pintura. Ao envolver a técnica do movimento-consciente, Pepper foi capaz de domar o seu tremor e outros sintomas. Ele teve Parkinson em torno dos trinta anos de idade e viveu até os noventa. A descoberta de Pepper não é inteiramente nova. O próprio Parkinson registrou em suas anotações de caso de 1817 que o paciente ao qual ele se refere como Caso IV foi capaz de interromper seu tremor interminável por alguns minutos com um breve e repentino movimento deliberado.
Filosoficamente, há aqui algo digno de nota, no que diz respeito à atenção. Quando trazemos uma ação do hábito à consciência, despertamos uma nova percepção dela. Dentro e fora trocam de lugar. O tempo se desloca. A doença de Parkinson é sempre agora. Ou talvez possamos dizer que a doença nos lembra que a vida é agora. Neste ponto do meu raciocínio, esbarro na frase de Gertrude Stein de 1913, «Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa», sobre a qual ela mesma fez o seguinte comentário:
Agora todos vocês viram centenas de poemas sobre rosas e vocês sabem no fundo que a rosa não está ali... Acho que naquele verso a rosa é vermelha pela primeira vez na poesia inglesa em cem anos.
Vou para a aula de boxe três vezes por semana. Todos na turma têm Parkinson, em graus variados. A certa altura de cada aula (depois de fazermos nosso aquecimento e nosso alongamento e darmos nossos pulinhos) o treinador grita: «Ponham as luvas!». Corremos para os armários atrás das nossas luvas de boxe, então nos posicionamos diante de um saco de pancadas e começamos a dar socos. Há seis socos básicos no boxe. Cada um tem um número:
1. Jab
2. Cruzado
3. Gancho com a mão da frente
4. Gancho com a mão de trás
5. Uppercut com a mão da frente
6. Uppercut com a mão de trás
A parte central de uma aula de boxe envolve socar o saco de pancadas de acordo com uma combinação de números dita pelo treinador. Cada um de nós reproduz os socos que correspondem aos números. É bem rápido. Acho que, quando estou tentando executar uma combinação complicada de boxe, consigo sentir os neurônios no meu cérebro penando e se esforçando. Sei que parece loucura. Mas, como vimos antes, a fronteira entre dentro e fora não é tão simples.
Quanto mais eu sei sobre a doença de Parkinson, mais a vejo como a tentativa de se manter de pé contra uma correnteza que nunca para de puxar. Os livros me dizem para prestar uma atenção consciente e contínua a ações como andar, escrever, escovar os dentes se eu quiser inibir ou retardar a decadência dos neurônios. É difícil viver em constante esforço. É difícil viver dentro da palavra «degenerativo», que significa que, por mais que eu me esforce, não venço.
É claro que todos se esforçam a vida toda. E nenhum de nós vencerá contra a mortalidade. Mas há uma diferença entre se esforçar para (digamos) aprender grego antigo ou passar o aspirador de pó e se esforçar para prestar uma atenção microscópica a cada instante de um ato físico. Estudando a sua própria maneira de andar, Pepper a analisou em nove segmentos de ação e seis alvos de atenção para cada passo que ele dá. O homem era intenso.
Antes de deixarmos o tópico do esforço, mais uma observação sobre as aulas de boxe. Colocar a primeira luva de boxe é fácil; colocar a segunda luva, não tão fácil. Enquanto isso, o treinador grita: «Não use os dentes!». A prática convencional é encontrar alguém à deriva na academia e pedir ajuda para colocar a segunda luva. Como sou uma pessoa clássica, ocorre-me que toda esta situação – em que um ser humano fica diante de outro, levantando as mãos e pedindo ajuda – tem a mesma estrutura do antigo gesto ritual chamado «súplica», como quando Príamo vai à tenda de Aquiles no final da Ilíada e suplica pelo corpo do seu filho. E, na minha aula de boxe, observo que é quase impossível, quando alguém está colocando uma luva na sua mão, conjurar ou se preocupar com a porta escura.
Escrever este ensaio em um caderno com um lápis foi um exercício de humilhação. A caligrafia é parcialmente legível. Não alcanço nenhuma libertação do tipo John Cage das algemas do meu eu com este rabisco. A letra parece, na verdade, muito eu.
Por falar em autenticidade, aqui vai um último fato incidental interessante: na década de 1950, Twombly estava no exército e foi designado para a divisão de criptografia, onde passou alguns anos decifrando os traços todos de outras pessoas no papel. Tenha cuidado com a forma como você lê aquele envelope de argila.
Mas, mesmo, que diferença faz a caligrafia? Quase todos a quem mencionei minhas preocupações com a caligrafia ruim me disseram algo como: «Ah, eu sempre tive uma letra horrível, ninguém na minha família consegue ler e só piora com o tempo; hoje em dia eu faço tudo no computador». Com frequência, quando as pessoas dizem algo assim, elas parecem um pouco constrangidas. Eu queria ter outra perspectiva sobre esse constrangimento, então decidi perguntar a compositores sobre a diferença entre fazer uma partitura à mão e usando um programa de computador.
Primeiro, o compositor estadunidense David Lang, que disse ter começado a escrever partituras no computador no início dos anos 1990, mas sempre se perguntou o que isso pode ter transformado na sua composição, uma vez que ele costuma usar muita matemática e gráficos e tabelas de proporções, que são muito mais fáceis de fazer em um computador. Então em 2003 ele decidiu ver como seria voltar aos antigos hábitos. Escreveu uma peça chamada «this was written by hand» [isto foi escrito à mão] usando apenas lápis e papel. Vou citá-lo:
Tentei torná-la tão complicada e estruturada quanto o restante da música que eu estava escrevendo na época, mas descobri que já não tinha paciência... então a peça acabou sendo muito mais simples. Depois tive a ideia de que a música deveria ser publicada apenas em um fac-símile da minha partitura em papel, mas, quando tentei copiar a música com cuidado o suficiente para publicá-la, à mão, continuei cometendo erros e ela se tornou ilegível, então acabei copiando-a no meu computador e publicando essa versão.
Depois de Lang, dirigi-me à compositora islandesa María Huld Markan Sigfúsdóttir, que teve uma visão bastante distinta:
É meio difícil descrever, mas sinto-me mais em contato com a música, quase como se escrever à mão tivesse a mesma qualidade de tocar. Ou que a música é mais real, não tão genética quanto às vezes parece quando se escreve no computador. Sinto como se cada uma das notas tivesse uma «personalidade» individual quando manuscrita, e isso pode ser exagerado com diferentes ênfases no tamanho, forma ou espaço de cada nota ou passagem.
Depois de ter me mostrado algumas das suas partituras manuscritas, María acrescentou uma terceira perspectiva sobre toda a situação ao me contar que, antes de colocar qualquer nota no papel, ela faz um desenho que não tem notas ou palavras, apenas formas e cores indicando suas ideias para a obra. Ela parece tímida ao mencionar esses esboços; talvez todos fiquem receosos diante dos nossos eus pré-verbais.
Seja como for, ninguém pareceu interpretar a situação como uma crise do eu ou um teste de caráter como eu havia feito. Para essa convicção, tive que recorrer a Confúcio, para não mencionar a pergunta inesgotável de Barthes: como produzir um traço que não seja tolo?
Neste ponto, senti que havia exaurido a estética e me voltei para a ciência, em que há um corpo substancial de evidências demonstrando que a caligrafia estimula conexões diferentes e mais complexas do que digitar em um teclado, conexões essenciais para codificar novas informações e formar memórias. Os movimentos controlados com precisão da caligrafia levam a padrões no cérebro que promovem o aprendizado. O cérebro se abre, se aprofunda e se enriquece. Há nele (subjetivamente falando) uma euforia e um sentimento de volta para casa.
A volta para casa nos aproxima do fim. Terminemos com outro trecho de Catulo. Esta é uma tradução aproximada de um fragmento de texto recentemente descoberto e até então desconhecido. Parece ser uma entrevista entre o poeta romano e John D. Pepper:
John D. Pepper: Morte.
Catulo: A morte me fez crescer.
John D. Pepper (Pepper daqui em diante): Amor.
Catulo: O amor me fez durar.
Pepper: Doença.
Catulo: A doença não descansa.
Pepper: Paixão.
Catulo: A paixão me embasbaca.
Pepper: Nabos.
Catulo: Os nabos têm gosto de violeta.
Pepper: Violetas.
Catulo: As violetas têm cheiro de nabos.
Pepper: Deuses.
Catulo: Os deuses fizeram o meu silêncio.
Pepper: Burocratas.
Catulo: Os burocratas fizeram a minha melancolia.
Pepper: Lágrimas.
Catulo: As lágrimas são minhas irmãs.
Pepper: Riso.
Tradução de Giovani T. Kurz
1. Conforme R. Barthes, «Cy Twombly ou non multa sed multum». Em O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
2. N. Doidge, O cérebro que se transforma. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Só pela foto de Anne carson com luvas de boxe já valeria a leitura
Pesquiso sobre a linguagem visual das escritas, sua estética, sua poética e sua política.
Escrevo a mão todos os dias, porque me encantam a arte e a técnica interagindo enquanto crio signos e formas com sentidos múltiplos.
Adorei o texto.